quinta-feira, maio 13, 2010

Alice no Submundo


Em certo momento do filme, um personagem vira pro outro e fala:
-Cachorros acreditam em qualquer coisa.
Esse comentário não é só pertinente ao animal que acaba de acreditar numa mentira contada, mas também a toda a história que nos é apresentada, sendo nós meros caninos sentados na frente da tela.
Essa mentira, porém, deve ser elaborada, caso contrário não acreditaremos no discurso e as palavras viram motivo de chacota ou, em muitos casos, vergonha alheia.
E ser bem contada não é ter uma "boa equipe", ter "bons” efeitos ou um visual alucinante. O buraco, inclusive o qual a protagonista cai, é mais embaixo.
Somar todos os elementos e fazer com este mundo fique, de fato, maravilhoso, é uma proeza de poucos criadores e de poucas obras; fazer com que entramos nos medos, nas alfinetadas, na fumaça e na garoa, é ainda mais impressionante - e aqui não falo do 3D.

A piada da crença dos cães é um exemplo dos diversos níveis de Alice. Não é de subtramas ou interpretações, mas de como o filme retrata extremo terror de forma lírica e poética. Para a tirania, um comentário sobre comer os filhos de um dos súditos é engraçado, com o humor negro estourando aos olhos. E que Burton é um dos cineastas mais visuais de nosso tempo, aqui não resta dúvida. A tecnologia digital é sem vergonha, experimental e extremante bem definida em efeitos deformativos do corpo e face. O Chapeleiro Maluco tem seus olhos esbugalhados, mas isso não destoa resto do rosto de Johnny Depp, potencializando os devaneios mentais de seu personagem.

A vilã rouba a cena. Helena Bohan Carter é hilária e assustadora em cada aparição. Desde os tiques, passando por sua corte e seu castelo. Um deleite visual cheio de gags cômicas, de pequenas piadas e críticas escondidas a cada frame.
Aliás, Burton consegue uma liberdade com os atores fantástica. E isso permite que seu universo fique ainda mais livre para as investidas e tentativas de seus parceiros de longas datas e projetos.
Uma pena que a trilha de Danny Elfman estivesse baixa demais. A música tema, colocada com os créditos, é uma de suas melhores composições até o momento.

Não é de se estranhar que Tim Burton esteja encabeçando Cannes 2010. O festival tem como premissa encontrar o cinema de autor, e Tim Burton consegue como poucos fazer um filme seu, mesmo sendo o filme do verão, cujas arestas não são apenas cortadas e sim com o corpo inteiro já pré-determinado.
Todos os Tim Burtons são filmes distintos; por mais que reconhecemos temas recorrentes, citações entre as películas e areias das mesmas praias, cada um tem sua individualidade e, ao mesmo tempo, carregam não apenas características, mas sim a essência de seu diretor. E Alice é um belo exemplo dessa capacidade e potencialidade.